Quem são os corpos que produzem arte?
Se entendemos o corpo negro feminino como um corpo político, questionamos: o que pode o corpo?
O que pode o corpo para produzir resistência ao poder hegemônico, dominante?
O que pode o corpo para existir e resistir em modelos deletérios, hostis a sua existência?
Esta proposta de Mostra Cultural, que ora apresentamos, nasce a partir do documentário homônimo “Corpos (In)visíveis”, com o intuito de pensar o corpo negro feminino numa sociedade racista e patriarcal, na medida em que ele se constrói subjetiva e coletivamente ao mesmo tempo em que são postos sobre ele, pela visão colonial, todo um conjunto histórico-social de estereótipos, imaginários e violações.
Romper com silenciamentos históricos implica, tantas vezes, em deslocamentos de olhares e lugares. Desnaturalizar imposições históricas, subjetividades e identidades insistentemente apagadas, conscientizar-se sobre opressões e dores, sobre o que é possível fazer delas.
Seria possível, então, falar dessa dor que nos é histórica, enquanto cor negro de mulher, partindo do lugar da resistência?
Resistimos também porque nossa dor, nosso corpo, não é um corpo invisível. Esse corpo que resiste é um corpo que baila, que dança, que brinca, que ri, que fabula, que conta histórias, que escarnece, que se retrai, que se entrega, que se sente medo, que sente a dor e a potência de ser um corpo negro de mulher.
É desse corpo que descobrimos tantas outras possibilidades de ser, de fazer, de existir, de resistir. Olhar para dentro para seguir adiante. Emergir da dor para transformar. Matar ontem o pássaro com a pedra que lançamos hoje. Reinventando corpo, memória, trajetória, fábulas de si e de nós, subvertendo o tempo.
Todo momento é momento de início. Transformação. Mudança. Aspiração coletiva. De lançar a dor no mar e pedir para levá-la para longe.
Partimos, então, da compreensão da arte negra como produção de vida, como produção de sentido, de espaço para existir, com plenitude e inteireza. As artes e culturas africanas e diaspóricas são performáticas, carregadas de símbolos e expressividades, no corpo, nos adereços, nas pinturas corporais, nos cabelos, nos adornos, na dança, no cantar, no pular, em sua performatividade.
Toda essa herança performática vem da ancestralidade e espiritualidade desses corpos. Num projeto que evoca a arte negra, não há outro lugar de onde se partir que não o corpo, como identidade e memória, como documento, evocando essa ancestralidade ocultada pelo colonialismo, ativando-a por meio do movimento performático, que é ancestral.
Falar de corpo e ancestralidade é falar da ativação ancestral. É falar da força que reinventa o tempo. É falar do corpo como discurso, como potência cênica. É abraçar nossas mitologias, nossa oralidade, nossa corporeidade, nossas filosofias, nossas narrativas e estéticas, num mergulho de construção identitária de si.
Nas culturas negras, o corpo é elemento central, mesmo para os destituídos em diáspora.
Um corpo que não é ilha,
mas continente.
Embarcação.
Movimento.
O próprio tempo.
Amor e afeto.
Vendaval e leveza.
Calmaria e tempestade.
Vento e aconchego.
Dor e cura.
Lugar de costurar caminhos,
de encontro.
Lugar de contar-se.